Disney segue o fluxo e também tem trimestre abaixo do esperado
A Casa do Mickey Mouse teve um crescimento desacelerado no seu segundo trimestre, mas aposta nos esportes para alavancar os próximos meses
A semana certamente não foi das mais calmas na vida do CEO da Disney, Bob Chapek. Na quarta-feira, um dia antes da conferência de ganhos do Q2 fiscal da companhia, a Variety divulgou duas reportagens colocando em xeque, de alguma forma, as mudanças criativas e executivas da Casa do Mickey Mouse. Os textos deram muito material para jornalistas e analistas questionarem a estratégia do conglomerado no DTC (direct-to-consumer = streaming), e como resultado de um relatório pouco animador, cresce um ceticismo entre determinados setores.
A primeira reportagem, sobre o Universo Cinematográfico Marvel que agora inclui séries de TV como ‘WandaVision’, ‘Falcão e o Soldado Invernal’, a ainda inédita ‘Loki’ e mais um catatau de títulos, reúne showrunners veteranos e novatos para refletir sobre — e, naturalmente, questionar — a condução destas séries do MCU sem um showrunner. Os títulos mais importantes dentro destas produções ficam a cargo do diretor e do roteirista chefe, mas os profissionais da indústria apontam que a longo prazo essa retirada do poder dos escritores tende a descaracterizar a televisão e o formato como um todo.
Isso porque, diz a gênese, a TV é um meio do escritor e o cinema é um meio do diretor, e é justamente daí que advém a importância do showrunner. Na prática do MCU, os resultados que observamos até agora são completamente antagônicos: ‘WandaVision’ sabe o que é um episódio, e em meio aos tropeços ainda consegue executar grandes arcos temporais em paralelo aos episódicos. O mérito disso é em grande parte devido ao trabalho do diretor Matt Shakman, como já observado neste texto — justamente porque ele é veterano do meio.
O mesmo não pode ser dito de ‘Falcão e o Soldado Invernal’, que só provou seu caráter transitório com o anúncio de ‘Capitão América 4’. A falta de direcionamento é consequência imediata da inexistência de uma linha narrativa capaz de se desenvolver organicamente em duas frentes, o que seria resolvido com a presença de alguém que saiba a diferença de um filme para uma série… ou seja, um showrunner.
Dica de leitura: Esta reportagem da Fernanda Talarico esclarece bem a importância do cargo.
De qualquer forma, embora o primeiro episódio de ‘Falcão’ supostamente tenha resultado na maior audiência do Disney+, o fato é que o lançamento sozinho não converteu em um número de assinaturas razoável para o streaming. No total, o serviço fechou o segundo trimestre de 2021 com 103,6 milhões de assinantes, sendo que o estimado era de chegar a 110 milhões.
Mas antes de nos precipitarmos rumo a conclusões apocalípticas, é importante observar contexto.
Os relatórios fiscais do Q11 de Netflix e AT&T (dona da WarnerMedia, dona do HBO Max) mostraram a mesma tendência à desaceleração. A gigante do streaming esperava recrutar 6 milhões de novos assinantes, mas recrutou apenas 4, enquanto o HBO Max cresceu somente 2,7 milhões com os lançamentos dos badalados ‘Godzilla vs. Kong’ e ‘Liga da Justiça de Zack Snyder’. Eu escrevi sobre o assunto aqui.
Isso quer dizer que um ritmo mais fraco está de acordo com as tendências do mercado, e é o que acontece depois do crescimento exponencial observado tanto no Disney+ quanto na Netflix em 2020 por causa da pandemia. Com grande parte das produções ao redor do globo de volta à ativa, e o avanço da vacinação em países que não são governados por um genocida, é de bom tom não esperar que as assinaturas continuem batendo recordes.
Mas a Disney tem outros mundos a desbravar e confianças a conquistar. Já sabemos que apenas o número de assinantes não nos fornece a figura completa para analisar o desempenho de uma plataforma, e é preciso olhar com atenção para a tabela de lucros. Quando falamos de streaming, um dos primeiros índices que atrai a atenção de Wall Street e de repórteres (como esta que vos escreve 🙋🏽) é o ARPU, ou Average Revenue per User. Este índice nos diz qual é a receita média por cliente e conta em detalhes o quão lucrativa aquela empreitada realmente é.
Portanto, enquanto a Netflix se orgulha com ARPU de US$ 10,73 na média global e US$ 14,25 na América do Norte, o Disney+ viu o índice reduzir no trimestre para US$ 3,99, uma queda de 29% em relação ao último ano.
Caros leitores, é um número muito baixo, principalmente levando em conta que estamos falando da Disney. A razão disso é simples, e o grande ‘culpado’ é o Disney+ Hotstar, basicamente a versão do D+ da Star Índia, por sua vez uma subsidiária da WDC.
De acordo com Chapek, o Disney+ Hotstar foi responsável por 1/3 das novas assinaturas, e excluindo esta somatória, o ARPU sobe para US$ 5,61 — apenas 2 centavos de dólares a menos do que era em março de 2020. Ainda assim, muito baixo considerando que até o HBO Max, que está num prejuízo danado, tem média de US$ 12.
Isso não significa que o Disney+ esteja em ruínas, mas deixa subentendido que seu sucesso ainda depende bastante dos lançamentos cinematográficos. Talvez até mais do que Daniel Kareem, recém promovido a gerente de distribuição da Walt Disney Media & Entertainment, gostaria de admitir.
Isso nos leva diretamente à segunda reportagem publicada pela Variety na fatídica quarta-feira, que denunciou as divergências de métodos de trabalho de Bob Chapek e Bob Iger. O primeiro, atual CEO, substitui o segundo, que deixou o cargo no início do ano passado e se aposenta de vez da Disney em dezembro próximo.
(Aliás, Bob Chapek antes era diretor de parques, o que sempre me faz lembrar de Tom Wambsgans e sentir saudades de ‘Succession’. Volta, ‘Succession’!)
Na matéria, fontes da revista explicam que a diferença na condução do dia-a-dia da empresa, e a própria progressão dos imputs criativos de Chapek, estão aos poucos transferindo o poder de decisão criativa dos heads de execução para o setor de distribuição. Isso torna o que já não era muito interessante em algo ainda mais catastrófico.
A consequência direta é deixar gerentes, diretores e presidentes do porte de John Landgraf (presidente do FX) e Peter Rice (presidente de conteúdo de entretenimento) com menos responsabilidades e gerência sobre lucros & perdas. Na prática, isso quer dizer que quando a coisa dá certo, quem ganha os parabéns agora é a turma da distribuição, embora a execução dos projetos não seja exatamente função do mesmo setor.
Então, como a batalha de egos dos Bobs se relaciona à diminuição do ARPU e à dependência dos lançamentos cinematográficos?
Simples. O crescimento reduzido coloca um holofote inesperado no setor de distribuição, já que todas as mudanças feitas na Casa do Mickey Mouse no último ano foram para privilegiar o DTC. E, se este não estiver crescendo, então isso denuncia uma estratégia falha de Bob Chapek — uma treta que a Variety plantou previamente com as duas publicações.
Paralelamente, a lógica do crescimento do streaming naturalmente recai sobre conteúdo, e espera-se que este seja o foco da Disney para reaver a confiança ligeiramente abalada dos investidores. Sempre esperou-se que os grandes blockbusters voltassem às estreias exclusivas nos cinemas, mas não foi por acaso que Chapek aproveitou esta conferência para anunciar a janela de 45 dias para ‘Free Guy’ e ‘Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis’.
Eu gosto desta janela de 45 dias. Falei dela aqui.
Mas considerando a reestruturação e a transferência de responsabilidades, é de se esperar que novas cobranças neste sentido não sejam recebidas com muito entusiasmo pelos criativos.
É claro, essas mudanças não devem causar tanto reflexo em divisões consolidadas como Lucasfilm, Pixar e Marvel Studios, sob as lideranças de Kathleen Kennedy, Jim Morris/Pete Docter, e Kevin Feige. Especula-se que Alan Bergman assuma sozinho as rédeas de Conteúdos dos Estúdios a partir de 2022, e embora muito possa mudar quando Alan Horn, atual CCO, seguir Iger e deixar a Disney em dezembro, dificilmente alguém vai querer mexer nos times que estão ganhando, até porque a dupla de Alans deixa uma bela marca na história da companhia.
Mas nem tudo são as grandes marcas que vendem bonecos e viram montanhas-russas. Quando distribuição passa a contar mais que execução, o maior risco em termos de conteúdo recai sobre as divisões menos privilegiadas, como 20th Century, Searchlight, FX (ou seja, tudo que veio da FOX) e Hulu. Não que elas estejam fadadas ao fracasso, mas se a liberdade criativa estiver em xeque diante de uma cobrança por entregas, veremos um apagamento cada vez maior dos poucos pontos dissonantes que ainda teimam em arriscar errar na Era do Streaming. E nós, eu e Donald Glover, precisamos destes riscos pra não morrer de tédio.
Esportes importam
No meio disso tudo, coube justamente ao Hulu entregar as boas notícias da quinta-feira, com um crescimento bastante significativo que veio da cobertura de eventos ao vivo no pacote Live TV + SVOD. Para o ESPN+, o Mickey Mouse também fechou novos pacotes de eventos esportivos no segundo semestre, o que os analistas internos esperam garantir uma balança estável.
Tanta é a importância dos esportes que Bob Chapek afirma que é este o motivo do adiamento do lançamento do Star+ na América Latina, de junho para 31 de agosto. Apesar de eu definitivamente não ser o público-alvo dessa mudança de estratégia, é fato que a programação ao vivo — de telejornais e futebol — é uma das últimas barreiras a serem conquistadas pelo streaming.
(Se tem alguma relação com aquela história do Starzplay contestando o nome, tá todo mundo escondendo o jogo.)
Dica de leitura: O The Hollywood Reporter compilou as reações de Wall Street ao trimestre da Disney e tá todo mundo meio ressabiado mesmo.
~NOTÍCIAS PESSOAIS~: por causa da newsletter, fui convidada a participar do episódio #406 do Braincast, em que debatemos o paradoxo da escolha, assunto que eu havia repercutido no texto do dia 30 do mês de abril. O papo foi ótimo e vocês podem ouvir aqui.
E aos novos seguidores chegando através do episódio: muito obrigada! Sejam bem-vindos!
O babado da semana foi a casa do Globo de Ouro caindo e eu tô amando. Já deu a hora desse negócio, gente.
E o elenco de Entre Facas e Segredos 2 que já contratou Dave Bautista e Kathryn Hahn? Amei. Netflix, nunca critiquei.
🔥 The Underground Railroad: A série do Barry Jenkins para o Prime Video baseada no livro de Coulson Whitehead está acumulando fantásticos elogios. Diferente daquela tragédia que foi ‘Them’. Vejamos!
🔥 O Caso Evandro: Ainda não assisti, mas vale a dica nem que seja por questão de curiosidade. Lá no Globoplay!
❄️ A Mulher na Janela: Esse filme teve tanta refilmagem antes de passar de mão em mão e acabar na Netflix que precisa ser visto só pela piada. Amy Adams, 2023 com certeza.
❄️ Halston: Mais uma série do Ryan Murphy para a Netflix, uma frase que eu gostaria de não precisar escrever, ler, falar ou ouvir nunca mais na minha vida. Mas leiam a crítica do Daniel Fienberg no THR, que é divina.
E por hoje é só isso tudo. Beijos, até! E se puder, compartilhem! 😁
A Disney tem um calendário fiscal ligeiramente diferente, encerra o Q2 quando suas concorrentes encerram o Q1. Portanto, o comparativo diz respeito aos mesmos meses.