‘WandaVision’ não foi planejada para ser o primeiro projeto da Fase Quatro do Universo Cinematográfico Marvel. Sequer foi planejada para ser o primeiro seriado do MCU. Se o mundo não tivesse acabado em 2020, teríamos visto ‘Viúva Negra’, ‘Falcão e o Soldado Invernal’, ‘Eternos’ e ‘Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis’ antes de Wanda Maximoff se tornar autora de fanfic em Westview. Mas a vida deu a volta nos planos de Kevin Feige e, talvez, tenha sido para melhor.
Nas últimas semanas, comecei a me questionar por que a série virou uma porta de entrada tão atraente para pessoas que não tinham familiaridade ou interesse prévio no MCU, um movimento que presenciei nas redes sociais e em fóruns ou salas de debate sobre o programa. Por que alguém que nos últimos dez anos não teve curiosidade sobre o rolo compressor do blockbuster de repente decide se colocar na posição de acompanhar uma série como ‘WandaVision’? Algumas hipóteses me vieram à cabeça.
A metalinguagem como Sinal de Paz
‘WandaVision’ não é a primeira série da Marvel, mas é a primeira série a de fato integrar o MCU. A novidade vem atrelada a uma ruptura e o fim do que conhecíamos como Marvel TV.
Em outubro de 2019, Kevin Feige foi promovido dentro da Marvel e, no mesmo mês, foi anunciada a saída de Jeph Loeb da companhia. Feige, até então presidente da Marvel Studios, foi promovido ao cargo de CCO, respondendo pelo direcionamento criativo das histórias contadas pelo selo através de todas as mídias, incluindo anúncios, publicações em texto, filmes, animações e TV. Basicamente, todas as divisões da Marvel respondem diretamente a ele.
Loeb era basicamente o “Kevin Feige da TV”, a pessoa por trás das séries dos ‘Defesores’, ‘Agents of S.H.I.E.L.D.’, ‘Agent Carter’, ‘Inumanos’,‘Runaways’, ‘Manto e Adaga’, etc. Todos estes produtos, embora reconhecessem a existência dos eventos e personagens do MCU, não interferiam diretamente no que acontecia nas telonas, e atrair os fãs dos Vingadores para estes projetos não era exatamente uma tarefa fácil.
Nenhuma destas séries, verdade seja dita, era particularmente fantástica. MAoS teve uma vida longa e estável, ‘Agent Carter’ teve sua base de fãs fiéis, mas ‘Inumanos’ era uma tragédia anunciada, e as séries dos Defensores pipocaram para todos os cantos: da ótima primeira temporada de ‘Demolidor’ ao péssimo ‘Punho de Ferro’, elas escancararam o quanto o projeto não estava pronto para ser “O Vingadores da TV”.
Então, quando ‘WandaVision’ chega fazendo alarde sobre referências a clássicos da TV norte-americana que sedimentaram o formato das comédias, soa como uma espécie de acordo de paz, uma resposta à reação inicial de desconfiança sobre este movimento de junção de TV e Cinema no MCU. Por muitos anos, a televisão foi enxergada como uma forma de arte inferior ao cinema, e quando você anuncia séries de TV que servirão para “preencher lacunas” entre um filme e outro de seus grandes heróis, parece um reforço deste estereótipo.
Mas no momento em que assume as rédeas e decide celebrar os clássicos, ‘WandaVision’ sinaliza que entende sim, e muito bem, o que fazer com o formato televisivo. Demonstra até que entende melhor que suas antecessoras de Jeph Loeb, e o trabalho de um diretor veterano e multifacetado como Matt Shakman é essencial para isso. Com um currículo que passa por ‘Todo Mundo Odeia o Chris’, ‘One Tree Hill’, ‘House’, ‘Fargo’ e ‘Game of Thrones’, Shakman tem uma extensão criativa que possibilitou à série balancear com maestria os arquétipos das sitcoms ao formato envelopado e higienizado das aventuras heroicas da Marvel.
Soa como uma mensagem direta ao público da TV antes de a série se dobrar em si mesma para explicar a lógica narrativa do ‘Mundo das Sitcoms’ na forma como Wanda Maximoff lidou com as perdas durante toda a sua vida. É como se Kevin Feige aparecesse em um VT, se sentasse em uma cadeira invertida e dissesse: “Ei, eu sei que eu estou meio que invadindo isso aqui e parece que estou usando apenas para tampar um buraco, mas vem comigo que eu vou tentar te mostrar que não é nada disso”.
E meio que funcionou.
Um limite criativo que é ruim, mas que é bom
Em dezembro, no lançamento de ‘Mulher-Maravilha 1984’, li um tuíte do professor, escritor (e autor do #EmptyCupAwards) Myles McNutt que não me largou desde então. Ele escreve:
“Enquanto o formato do MCU cria um teto sobre o que um filme pode alcançar enquanto uma peça cinematográfica singular, cria também um piso que garante que cada filme soe significativo, mesmo que nem sempre profundo. A DC opera sem este piso.”
Em termos criativos e de uso de linguagem, não é mistério que a Marvel passa longe de ser inventiva e se contenta em ser minimamente competente. Não à toa, seus diretores consagrados, os irmãos Russo, atuam mais como produtores do que diretores de fato — ‘Capitão América: O Soldado Invernal’ é o melhor trabalho, mas não dá para afirmar que os filmes da dupla tenham uma identidade clara. Nos anos recentes, o estúdio tem ousado mais, e o trabalho de diretores como Taika Waititi, James Gunn e até Scott Derrickson (com o primeiro ‘Doutor Estranho’) engatinharam neste caminho que segue trilhado com Chloe Zhao, Cate Shortland e Destin Cretton. Estes filmes podem e querem ser mais do que uma massa pré-pronta genérica, e ‘WandaVision’ é um passo decisivo neste caminho.
É como se a série estivesse na transição entre a viagem lisérgica da excelente ‘Legion’, que operou sem as amarras de uma franquia, e o beabá genérico de um ‘Era de Ultron’ da vida. Quando ela está mais próxima da primeira, bate no limite daquele teto e tenta ultrapassá-lo. Quando não consegue, é puxada para baixo e lembra ao público que ainda precisa cumprir um propósito no MCU.
Entre a familiaridade e o completo desconhecido
É a existência neste limite que torna ‘WandaVision’ ao mesmo tempo inventiva e deslocada o bastante para ser um bom ponto de entrada para novos espectadores e convencional o suficiente para provocar exaustões em quem esperava mais ousadia. E nenhum dos dois lados está completamente errado.
Nos primeiros episódios, a série é basicamente uma grande exibição de estilo e uma exaltação da fórmula. Ela reprisa o formato das séries das décadas de 50, 60 e 70, seguindo à risca os episódios com conflitos singulares que surgem e se resolvem dentro de 25 minutos.
Cada episódio tem uma questão específica e, aparentemente, simples. Será que Wanda e Visão vão conseguir agradar os Hart no jantar? O que Wanda vai fazer no show de mágica para agradar a vizinha tirana quando Visão aparece completamente “bêbado”? Quem vai fazer o parto de Billy e Tommy? Nas entrelinhas disso, enquanto séries como ‘A Feiticeira’, ‘The Mary Tyler Moore Show’, ‘Tudo em Família’ e ‘The Dick Van Dyke Show’ estavam discutindo os limites do humor na TV, a visão da mulher dona de casa tradicional e a ruptura dos padrões estéticos, ‘WandaVasion’ está plantando as sementes do que há de errado com aquela Westview de televisão. Sempre há algo mais delicado sendo abordado para quem se dispõe a olhar além da superfície.
A parte mais bonita disso culmina no episódio 8, quando uma sessão de terapia forçada nos explica por que Wanda é tão apegada às comédias de TV. É ali que a série se firma numa mensagem que tem muito a ensinar ao modelo de TV pós 3ª Era de Ouro, esse que achou incrível chamar série de “filme de 10 horas” porque resolveu trazer para a TV diretores de cinema que odeiam TV.
Por isso, o principal apelo de ‘WandaVision’ é a celebração desta fórmula. Seu argumento é que essa característica, exaustivamente apontada por detratores como um defeito e algo que faz da TV “inferior”, é parte essencial da identidade do meio.
E se você quiser ver filme de 10 horas, saia da minha TV e vá conhecer a filmografia de Lav Diaz.
Temporada completa x Episódios semanais
Outra questão que permeou o debate de ‘WandaVision’ foi o lançamento de episódios semanais. A última década instaurou o lançamento de temporadas completas quase como uma nova regra, uma vez implementado pela Netflix e utilizado também pelo Prime Video. Mas é curioso que a primeira série de um streaming a vencer o Emmy Awards de melhor drama tenha sido justamente ‘The Handmaid’s Tale’, produção do Hulu que desde o início segue o lançamento de um episódio por semana.
Há casos e casos. A série limitada ‘A Teacher’, do FX on Hulu, teria se beneficiado do lançamento da temporada completa. O argumento foi apontado pela crítica da Variety, Caroline Framke, e faz total sentido. É uma série dificílima de se assistir pelos quatro primeiros episódios, e essa agonia dolorosa dá margens para concluir que a produção tem um argumento bem incorreto para o que está acontecendo. Depois ela dá a volta e você entende a provocação, mas até lá, é bem fácil alguém desistir por achar que ela está “passando pano para assediador”.
Já um ‘The Mandalorian’ da vida se deu muitíssimo bem com episódios semanais. Ela é totalmente formulaica, tem episódios carregados de identidade e, ainda por cima, executa ótimos ganchos. Estes são essenciais para garantir que, uma semana depois, seu público vai ter vontade de ligar a TV novamente para ver mais um capítulo da história — uma lição que ‘WandaVision’ também entende bem. Aliás, a massa genérica da ‘meiuca’ de boa parte das séries do streaming que lançam temporadas inteiras de uma vez é consequência direta disso: elas não precisam mais pensar em trazer o espectador de volta na semana seguinte, basta o próximo episódio estar ali a 5 segundos de distância.
Aos poucos, o lançamento semanal vem voltando com força. ‘The Boys’ se saiu melhor de audiência com isso na segunda temporada, e o Apple TV+ também está dando preferência para o “novo velho modelo”. Semanal e 'Em maratona’ são formatos que têm benefícios e problemas diferentes mas, no momento, o antigo tem se provado mais eficiente. É bom para esticar a conversa, para o tempo de vida da série e para as horas do dia do público.
A teoria matou a experiência?
Muito se especulou do que aconteceria em ‘WandaVision’ desde muito antes de sua estreia. Já se falava em Agatha Harkness desde quando se descobriu que a personagem de Kathryn Hahn se chamaria Agnes. Mas também se falava em Mephisto, em Magneto e em dezenas de outras hipóteses que se provaram, até o momento, incorretas.
Teorizar está na alma do fã de televisão. O público de ‘Twin Peaks’ na década de 90 foi essencial para esta forma de consumir o produto, que ganhou força com ‘Arquivo X’, ‘Lost’, ‘Fringe’, ‘Game of Thrones’, foi incorporado por ‘Westworld’ (e, pelo menos na primeira temporada, deu bem certo) e subvertido por ‘The Leftovers’. Assistir a um filme da Marvel é sair do cinema direto para a mesa do bar (aviso de gatilho: cinema e mesa de bar) e ir conversar sobre o que aquilo nos diz sobre a próxima aventura do próximo herói. Juntando uma coisa e outra, não dava para desatrelar ‘WandaVision’ da teorização.
Para mim, descobrir que as teorias estavam erradas é tão parte da diversão quanto o processo de criá-las. Elas são um exercício de narrativa e interpretação, que deve ser valorizado como um sinal da ligação do fã com o produto, desde que não interfiram no andamento da história que havia sido inicialmente planejada. Mas essa sou eu. A expectativa em torno das teorias, para a grande maioria, acaba gerando muitas frustrações.
Eu não posso te convencer a não se frustrar porque este ou aquele personagem não apareceu, ou porque isto ou aquilo não era o que você achava que deveria ter sido. As emoções com o que assistimos estão profundamente conectadas ao nosso entendimento de mundo, e isso é algo pessoal.
Enquanto um produto fechado, ‘WandaVision’ lutou em muitas frentes. Herdou a responsabilidade de abrir a Fase Quatro, herdou a responsabilidade de inaugurar as séries do MCU(*), herdou a missão de apresentar este universo a novos fãs, e com isso definiu o que o público vai aguardar do que vier daqui em diante. ‘Falcão e o Soldado Invernal’, vocês vão me desculpar, soa infinitamente mais desinteressante e esquecível, ainda mais com essa pose toda de “sou um filme de seis horas do Capitão América sem o Chris Evans”.
É sério, o Anthony Mackie de fato afirmou que a série “parece um filme da Marvel de seis horas”. Em 2021.
*É meio estranho dizer que uma série faz parte de um universo cinematográfico. Kevin Feige, eu gostaria de ser contemplada com outra sigla. Obrigada.
Por isso, ‘WandaVision’ se tornou duas séries diferentes.
Uma delas celebra a televisão e mira alto, mostra que é possível esperar um futuro mais ousado da Marvel em termos de narrativa, linguagem e temas. Ela impõe um desafio para as suas concorrentes, avisando que sabe explorar o que há de melhor na TV e que sente muito se você, da outra plataforma de streaming, não compreende a importância de ter calma. Ela não muda a TV, não cria novas regras. Apenas mostra por que olhar para trás é importante para compreender o futuro. Ela é linda, majestosa, olha com muita compaixão para uma Wanda humana, traumatizada, fragilizada e solitária. É ousada como eu, Marvete declarada e do mundinho Wanda Maximoff BR, jamais esperei que fosse.
A outra é mais apagada e se entrega a um vilão secundário completamente esquecível e a falatórios desinteressantes de agências de investigação. Cumpre os papéis burocráticos de explicar demais o que já estava claro e de servir à obra seguinte. É a parte da série em que Shakman utiliza os movimentos de câmera típicos do MCU, com sérias e longas explanações e suspenses que já chegam meio mortos. É o que a impede de ser excelente.
Mas ambas servem a uma personagem por muito tempo escanteada e menosprezada. A história destes nove episódios corrige o curso de uma Wanda jogada de um lado para outro nos filmes sem qualquer aprofundamento de sua história ou de seus traumas e motivações. ‘WandaVision’ olha para trás para admitir erros e contradições na construção da personalidade da sua protagonista nos cinemas, e dá a Elizabeth Olsen um espaço para provar o quanto fez muito com tão pouco que foi dado a ela, de ‘Era de Ultron’ a ‘Ultimato’. A série abre espaço para que possamos enxergar algo diferente neste grande blockbuster que é o MCU, embora nem sempre consiga mostrar onde este “algo diferente” reside. Mais do que isso, ‘WandaVision’ celebra tanto a Feiticeira Escarlate bela e poderosa quanto a Wanda Maximoff bebendo chá e vestindo um moletom cinza depois de perder todos os que amava. Há beleza nas duas.