Por um café com Villeneuve e Scorsese depois da vacina
É sério, alguém devia promover esse papo e disponibilizar na HBO.
Em novembro do ano passado, depois de um mês da famosa entrevista em que disse que os filmes do Universo Cinematográfico Marvel são “parques de diversão”, Martin Scorsese escreveu uma carta aberta no The New York Times explicando em mais detalhes a sua declaração. O artigo é tanto uma declaração de amor ao cinema como uma forma de arte disruptiva quanto um alerta para o afogamento do parque exibidor em filmes de franquias de super-herói, um problema que invariavelmente prejudica quem quer que esteja fazendo qualquer outro tipo de longa que não derive de uma grande propriedade intelectual já estabelecida.
“São sequências no nome mas refilmagens em espírito, e tudo neles é oficialmente sancionado, porque não pode ser de outra forma. Essa é a natureza das franquias cinematográficas modernas: com pesquisa de marketing, testadas pela audiências, vetadas, modificadas, vetadas novamente e remodeladas até que estejam prontas para o consumo.”
O momento daquela conversa foi logo após o lançamento de O Irlandês, na Netflix, e Scorsese entra na questão que nos aflige hoje, sem saber que tudo se transformaria completamente alguns meses depois.
Mas, você pode se perguntar, as pessoas não podem simplesmente ir para casa e assistir a qualquer outra coisa que queiram na Netflix, no iTunes ou Hulu? Claro — em qualquer lugar menos na tela grande, onde o cineasta planejou que o seu filme fosse visto.
Nos últimos 20 anos, todos sabemos, a indústria cinematográfica mudou em todas as frentes. Mas a mudança mais sinistra aconteceu de forma furtiva na calada da noite: a eliminação gradual mas certeira do risco. Muitos dos filmes hoje são produtos perfeitos manufaturados para consumo imediato. Muitos deles são bem feitos por times de indivíduos talentosos. Todos iguais, falta a eles algo essencial ao cinema: a visão unificante de um artista individual. Porque, é claro, o artista individual é o fator mais arriscado de todos.
Não quero dizer que os filmes devem ser uma forma de arte subsidiada, ou que já o tenham sido. Quando o sistema de estúdios de Hollywood ainda estava vivo e bem, a tensão entre artistas e as pessoas que controlam a indústria era constante e intensa, mas era uma tensão produtiva que nos deu alguns dos melhores filmes já feitos — nas palavras de Bob Dylan, os melhores foram ‘heróicos e visionários’.”
Quando penso na tensão instalada entre a AT&T e os realizadores que trabalham com a Warner nos filmes a serem lançados em 2021, esta declaração de Scorsese vem à tona, sobretudo quando ele afirma que uma tensão entre os artistas e os executivos é esperada e já foi saudável, mas que hoje só existe para eliminar riscos. “Hoje, a tensão não existe, e há alguns na indústria com absoluta indiferença à questão da arte e uma atitude para com a história do cinema que é ao mesmo tempo desdenhosa e proprietária — uma combinação letal.”
Algumas partes da carta de Scorsese são assustadoramente pontuais em relação ao momento da AT&T, o que nos faz pensar na ironia da coisa e na previsibilidade dos movimentos da indústria. Nesta semana, o Hollywood Reporter publicou uma matéria de capa sobre ‘o grande plot twist de 2020’ que faz revelações profundas sobre a natureza made in Silicon Valley do CEO da WarnerMedia Jason Kilar e sobre as variadas perspectivas do lançamento multiplataforma da Warner.
Por exemplo, enquanto exibidoras consideram cobrar entre US$ 3 e US$ 5 por ingresso para cada lançamento da Warner em 2021, com a pretensão de manter entre 75% e 80% do lucro para que o estúdio reverta um valor baixíssimo, temos talentos e representantes de atores e criadores irritados por diferentes motivos.
Alguns reclamam não terem sido sequer comunicados da decisão — Ann Sarnoff, chairman e CEO da Warner Bros., explica que a companhia tomou a decisão para evitar que a informação vazasse antes da hora —, outros teriam a inquietação facilmente resolvida com alguns milhares de dólares (o tratamento recebido por Gal Gadot e Patty Jenkins para o lançamento de Mulher-Maravilha 1984 não foi estendido para os demais parceiros).
Uma reportagem anterior do Hollywood Reporter (sério, esses caras) joga Jason Kilar debaixo do ônibus e explica que muitos talentos estariam dispostos a colaborar se as negociações tivessem sido feitas de forma honesta, mas que essas ofertas financeiras que poderiam resolver boa parte do problema de imagem da companhia ainda não foram feitas.
“Parte do problema é que Kilar parece falar pelos dois lados da boca”, declara o artigo, afirmando que “enquanto a Warner diz aos cineastas que a tática só se aplica aos filmes de 2021, ao mesmo tempo o CEO diz coisas como: ‘Em um certo momento, você precisa assumir a liderança’. Para onde ele está liderando? O destino do estúdio é mesmo consistente com uma alteração temporária em estratégia, necessitada pela pandemia?”
Então, parte da questão, como tudo na vida, é dinheiro, mas a parte que não é apenas sobre isso é a que me interessa. Denzel Washington está pistolaço que não tem um diretor de marketing pra cuidar do lançamento de seu próximo filme, The Little Things, que estreia em janeiro. A carta escrita por Denis Villeneuve e publicada pela Variety é dura e drástica, e faz alertas que talvez alguns leiam como apocalípticos demais, mas que de uma forma ou de outra não são ignoráveis.
Serviços de streaming são uma adição positiva e poderosa aos ecossistemas do cinema e da TV. Mas eu quero que o público entenda que o streaming sozinho não pode sustentar a indústria cinematográfica como a conhecíamos antes da COVID. O streaming pode produzir grandes conteúdos, mas não um filme no escopo e na escala de Duna.
Mas aí você pergunta: bem, mas e O Irlandês? E Destacamento Blood? E Mank? A Netflix não tem sido um refúgio sólido? Não foi ela a única a bancar o sonho megalomaníaco de Scorsese quando todos os outros estúdios rejeitaram o filme por ser caro demais?
Sim… e não exatamente. É seguro dizer que qualquer ideia drástica ou apocalíptica demais deva ser vista com uma certa cautela, mas também é importante ter noção de que Villeneuve não está errado ao dizer que o streaming não banca projetos grandiosos tão facilmente — e que os riscos são calculados. Pra um Irlandês, são cinco comédias do Adam Sandler, seis ou sete comédias românticas a la A Barraca do Beijo e três filmes de ação vazios e explosivos com um elenco escolhido via algoritmo com os nomes mais buscados no Google.
Neste sentido, é prudente também tirar uma lição da estratégia adotada pela Disney. Ao contrário da concorrente, a Casa do Mickey Mouse reafirmou que vai manter lançamentos exclusivos no cinema para os seus grandes títulos em 2021 (entre eles, os do Universo Cinematográfico Marvel). Bob Iger até mesmo ressaltou a importância dos lançamentos em grande circuito para transformar cada um desses filmes naquilo a que já estamos habituados, praticamente o ponto de origem de uma histeria coletiva da qual é muito difícil de fugir.
Um certo prejuízo (ou, melhor dizendo, um déficit na arrecadação) está previsto e calculado para os planos da Warner. Uma análise da MoffettNathanson estima que a empresa deixe de lucrar cerca de US$1,2 bilhão em 2021, enquanto executivos de estúdios rivais e analistas financeiros colocam esse número bem acima. Mas toda a estratégia visa alavancar o HBO Max e sanar parte da dívida astronômica de US$150 bilhões da AT&T. Então, se o sacrifício valer… quem sabe o que virá.
Isso nos leva de volta àquele tal atrito saudável entre criativos e executivos, que talvez volte a render frutos interessantes quando a indústria chegar a um meio-termo entre o catastrófico o streaming vai matar o cinema e o niilista nada mais importa.
Aliás, uma narrativa recorrente no início da pandemia era a de que os festivais online e os lançamentos de filmes com maior frequência em plataformas virtuais iria democratizar o acesso a obras que de outras formas ficariam “restritas” ao circuito de arte. Mas, depois de tantos meses testando esse modelo, a conclusão a que chego é justamente oposta: os filmes se afogam mais facilmente e a onda de algoritmo os consome com mais rapidez. Tesouros como Nunca Raramente Às Vezes Sempre e Time e somem das conversas e ficam ainda mais restritos do que já eram no modelo tradicional.
Ou seja, caro leitor, este foi um texto para expor, expor e não concluir nada, porque não dá para concluir o que vai ser O Futuro do Cinema™ tão fácil assim. O que eu penso é que a estratégia da Warner é um pouco drástica demais, mas não perco o sono pensando em quantos milhões de dólares um executivo bilionário está perdendo, porque eles ainda estão melhores do que eu nessa vida cheia de emoções do jornalismo freelancer. #mandajobs
O que realmente fica para ser analisado é o quanto desse prejuízo calculado vai recair sobre projetos autorais que fujam do escopo do Universo Estendido DC e grandes franquias do estúdio. Ficaremos de olho.
🔥 Alguém avisa?: Alguém avisa que títulos com interrogação são péssimos? Happiest Season chegou nas plataformas digitais brasileiras e é o clichê do clichê da comédia romântica de natal, o que seria qualquer coisa se fosse um filme hétero, mas como é LGBT, é ótimo, porque a gente também merece filme bobo e descompromissado que só serve pra deixar as solteiras pensando: “poxa vida, será que eu nunca vou namorar na vida…”
🔥 black-ish: Não é estreia, faz um tempo que as temporadas estão no Prime Video, mas eu quis compartilhar aqui e reforçar a dica. Comecei a ver de bobeira e curiosidade, porque gostei muito de #BlackAF, da Netflix, e a crítica americana toda azedou por ser igual a black-ish. Pensei: bom, então black-ish deve ser boa, né? Vou ver. E é mesmo, tá. Eu preciso sempre ter uma série de comédia pra estar vendo em segundo plano, e essa é uma escolha perfeita porque são 7 temporadas e ainda tem grown-ish, mixed-ish e vai ter old-ish. Multiverso Kenya Barris, aí vou eu.